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segunda-feira, 26 de março de 2018

Crónica "A vida montada em duas rodas" por Octaviano Correia

Octaviano Correia




Quem não tem cão, caça com gato, diz o dito ou, como disse o pensador e poeta Torquato Vency, “Viver é improvisar o tempo todo” e os “kupapatas” são a prova provada da capacidade de improvisar. Então aí vai....Uma crónica montada em duas rodas.

A escassez de transportes públicos levou a que algumas zonas urbanas da cidade capital fossem “invadidas” pelos moto-táxis, vulgo kupapatas, termo oriundo da língua Umbundu que, em português, significa apalpar.
Reza a história que a atividade de moto-táxi surgiu no país há mais de duas décadas, concretamente na província de Benguela, em 1991, logo após a desmobilização das tropas angolanas, em cumprimento dos acordos de Paz. Mas os kupapatas são mais do que meros “táxis” de duas rodas que furam corajosamente o trânsito caótico da capital angolana, transportando não menos corajosos passageiros. Pendurados. Literalmente. Sem capacete. Sopesando embrulhos. Sacos de compras e, não poucas vezes, os filhos. Eles, os kupapatas, são o ganha-pão e, ao mesmo tempo, uma forma de muitos jovens angolanos não enveredarem pelos caminhos da delinquência e do crime. São uma alternativa ao desemprego, uma forma honesta, ainda que de alto risco, de esses jovens garantirem o seu sustento e, não raramente, o da família. Cinco horas da manhã e já as ruas de Luanda se enchem com o estrépito dos motores das, nem sempre, bem cuidadas máquinas dos moto-táxis.

Assim, a modos como que de repente, no dia 22 de Fevereiro de 2002 a guerra civil de Angola, que durava há 27 anos parou repentinamente como quem fecha uma porta. Foi de repente, mas no decurso desses longos e dolorosos 27 anos, Angola viu os seus filhos mortos, estropiados, afetados física e psicologicamente. Viu os seus filhos, novos e velhos, abandonar as zonas de guerra para se refugiarem nas cidades grandes. Deslocados. Inadaptados. Sobrevivendo em estranhos, agrestes e, não raramente, cruéis habitats. E de repente nasceram as crianças. E as crianças fizeram-se jovens adultos. Sem trabalho ou com trabalhos precários. Por vezes aliciados para enveredarem pelos caminhos do roubo para, ilusoriamente, ganharem para o seu sustento ou para assegurarem o dia-a-dia de pais e avós que deixaram tudo, até a capacidade de mudar de vida, lá na sua aldeia saqueada, bombardeada, destruída pela guerra. Hoje, nas principais cidades de Angola há milhares de pessoas que ganham a vida sobre duas rodas, na “via” como dizem, conseguindo, por dia, em média, 4 a 5 mil kwanzas. Mas nem tudo fica com eles. Há que pagar o combustível.As peças. Os pneus. Pagar a alguns polícias para não verem aprendidas as suas motorizadas, não poucas vezes por “falhas” inventadas, pagar as multas pela violação das normas de trânsito, já que a maioria desconhece o código. Os kupapatas quase nunca descansam. Circulam por qualquer bairro, qualquer estrada, qualquer beco. De dia ou de noite. Trezentos e sessenta e cinco dias por ano, muitas vezes correndo risco de morte. São, em toda Angola, mais de 300 mil, com um número sempre em crescimento. É assim Angola. Cheínha de estranhas formas de ganhar a vida. Trabalhando. Honestamente. Tão diferente de uma Europa onde o desempregado nunca, ou quase nunca, encontra uma oportunidade para “se virar”, para garantir os euro do dia-a-dia. E foram quase trinta anos de guerra. Devastadora. Feroz. Brutal. Que aniquilou gente. Cidades. Vilas. Sanzalas. Que afetou para sempre a razão, a sensatez, a personalidade,
o discernimento de milhões de angolanos. Mas a vida flui. Nem que seja montada em duas rodas.

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